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A fábula do pato manco e o bode chinês


Os dados da balança comercial chinesa abrem o dia do mercado financeiro e mostram uma desaceleração da segunda maior economia do mundo ao final do primeiro semestre deste ano, turvando o cenário de crescimento em 2018. Mas Wall Street continua com baixa reação à guerra comercial declarada pelos Estados Unidos, escorando-se na estratégia política de Donald Trump contra a China, e ficando mais atenta à safra de balanços dos bancos.

O superávit comercial da China somou US$ 41,61 bilhões no mês passado, com altas de 11,3% nas exportações e de 14,1% nas importações, em termos dolarizados. Apenas com os EUA, o saldo comercial ficou positivo em US$ 28,97 bilhões, no maior superávit para junho desde 1999, sendo que as exportações chinesas à América alcançaram o recorde de US$ 42,62 bilhões, com muitas empresas antecipando as encomendas antes da barreira comercial.

O superávit comercial da China com a União Europeia (UE) também subiu para o nível mais alto desde 2011, enquanto o déficit com o Japão encolheu. Ainda assim, no acumulado de janeiro a junho deste ano, o saldo comercial chinês caiu a US$ 135,4 bilhões, o que representa uma queda de 26,7% em relação ao mesmo período de 2017.

Como a maior exportadora do mundo, a China continua a se beneficiar da demanda global robusta, mas o aumento das tensões com os EUA pesa nas perspectivas de crescimento da segunda maior economia do mundo, com o atual momento dificilmente sendo sustentável no futuro. O superávit recorde bilateral mostra exatamente que a economia norte-americana está robusta, enquanto a da China está enfraquecendo, com o consumo doméstico ainda fraco.

Na próxima segunda-feira, a China divulga os números do Produto Interno Bruto (PIB) entre abril e junho deste ano, que devem dar uma visão mais completa sobre essa perda de tração da economia. Ainda assim, as atenções de hoje estão voltadas ao desempenho dos bancos JPMorgan, Citigroup e Wells Fargo no segundo trimestre, que saem pela manhã, além da prévia deste mês do índice de confiança do consumidor norte-americano (11h).

À espera, desses números, os investidores mantêm o apetite por risco em alta, apostando em um alívio das tensões comerciais, após a China se absterem detalhar os planos de retaliação contra a nova rodada de ameaça de tarifas dos EUA. Os índices futuros das bolsas de Nova York estão em alta, embalando o pregão europeu, apesar do alerta do presidente norte-americano, Donald Trump, à primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, de que o seu plano “suave” para o Brexit pode “matar” qualquer acordo comercial com os EUA.

A libra esterlina é pressionada e cai ao menor nível em mais de uma semana, assim como o euro, sendo que o dólar ganha terreno em relação aos demais rivais. Essa força da moeda norte-americana faz o petróleo testar a marca de US$ 70 do barril do tipo WTI. O cobre também se enfraquece, liderando a queda entre os metais básicos. Já o yuan chinês (renminbi) se estabilizou pelo segundo dia seguido, enquanto o rendimento (yield) dos títulos norte-americanos (Treasuries) recuam, com o papel de 10 anos com taxa a 2,85%.

Na semana que vem, saem os balanços trimestrais de Bank of America, Goldman Sachs e Morgan Stanley, entre segunda e quarta-feira, novamente ofuscando o cenário comercial global. Mas o tema é preocupante.

Durante esta semana, o presidente dos EUA avançou na ofensiva contra a China, planejando impor tarifas sobre mais US$ 200 bilhões em produtos chineses a partir de agosto. Esse montante, somado aos US$ 50 bilhões em sobretaxas já em curso representa quase a metade de tudo o que a América compra do país asiático.

Se confirmado, o governo chinês não poderá manter a postura de retaliar na mesma medida, uma vez que as importações de bens norte-americanos ao país somam cerca de US$ 100 bilhões. Por ora, Pequim tem lutado para descobrir o que Washington realmente quer, ao elevar a disputa entre as duas maiores economias do mundo para um ponto sem retorno.

Se o presidente Trump insistir nas investidas protecionistas, não se pode descartar uma forte reação negativa dos ativos de risco em breve. Apesar do otimismo com o vigor da economia norte-americana, a geração de emprego e uma temporada de lucros maiores das empresas, há sinais cada vez mais contundentes de fim do atual ciclo econômico, com muitos já vendo chance maior de uma profunda recessão nos EUA em 2019 - no mais tardar, em 2020.

Afinal, a Casa Branca sabe do impacto das medidas de restrição ao comércio internacional sobre o crescimento econômico global e sobre os preços ao consumidor norte-americano, em meio a pressões inflacionárias vindas do atacado e dos salários. Os dados recentes sobre inflação e emprego no país já mostram isso.

Mas às vésperas das eleições legislativas nos EUA (mid term elections) e com a equipe de negociação comercial do país dividida entre os que defendem o livre comércio e os que são mais protecionistas, fica claro que o presidente norte-americano não está apenas em busca de acordos comerciais mais vantajosos. Para Trump, perseguir mercadorias chinesas é uma maneira rápida (e suja) de obter vitórias em questões populares entre sua base eleitoral.

Com os EUA se aproximando das eleições de meio de mandato, em novembro, que irão definir a composição do Congresso norte-americano, Trump está agindo para manter o Legislativo sob o comando de seu partido, o que seria vital para a agenda de governo e, quiçá, para uma reeleição em 2020. As recentes pesquisas, porém, têm antecipado uma vitória esmagadora dos democratas, indicando uma retomada da Câmara dos Representantes.

Tal perspectiva, se confirmada, transformaria Donald Trump em um “pato manco”, do inglês lame duck. Essa expressão é usada para se referir a um presidente já no fim do mandato e sem força política para emplacar mudanças, por causa da falta de apoio entre deputados e senadores. Trata-se de algo que Barack Obama e George W. Bush conhecem bem...

Assim, sob o risco de o pato Donald ficar manco, Trump insiste em uma postura externa de maior confronto e faz da China um bode expiatório para alcançar apoio político em sua base doméstica. Mas a decisão de Pequim de retaliar na mesma moeda à taxação de produtos, incluindo a soja de Iowa e os destilados de Kentucky, já afeta boa parte desses eleitores.

E o caminho até alcançar os votos necessários pode não ser tão benigno no campo econômico. O impacto nas economias emergentes e na cadeia global de suprimentos tende a ser mais expressivo do que qualquer termo acordado entre o republicano e seus parceiros comerciais. Isso em um momento de redução da liquidez global no sistema financeiro.

O Brasil tende a ser um dos mais atingidos, uma vez que China e EUA são os dois maiores parceiros comerciais do país. As tensões comerciais externas somam-se às incertezas eleitorais e aos receios fiscais, em meio à perda de tração da atividade econômica e a inflação em aceleração, ainda sob os efeitos da greve dos caminhoneiros.

Os dados sobre o setor de serviços em maio (9h) devem corroborar esse cenário. Ainda não se sabe quem será, mas o próximo presidente eleito terá de lidar com o rombo nas contas públicas, ainda mais se o Congresso aprovar as “pautas-bombas” que estão em discussão e que podem dificultar a meta fiscal deste ano.

A conclusão, então, é que, os recentes episódios da guerra comercial tendem a levar os ativos globais em direção a um mercado de urso (bear market), saindo do aparente mercado de touro (bull market) que o atual apetite por risco dos investidores tenta enganar - mas não convém. Principalmente no caso da Bolsa brasileira, do real e do prêmio de risco doméstico.

Ao enfrentar a China com lances “totalmente inaceitáveis” no confronto comercial, adicionando combustível à espiral de retaliação, Trump parece ignorar que o rival goza de maior peso econômico e de poucas restrições políticas do que qualquer outro concorrente a ser desafiado pelos EUA.

O presidente chinês, Xi Jinping, pode até não parecer durão, mas tem demonstrado que pretende lutar para defender os principais interesses nacionais, em especial o programa “Made in China 2025” - uma iniciativa do próprio Xi para dominar setores estratégicos de alta tecnologia e inovação. Ele não pode, portanto, se dar ao luxo de parecer fraco.

Ainda mais agora que o líder chinês não tem mais limites para o mandato presidencial e segue como o presidente do Partido Comunista da China (PCC). Não há, portanto, qualquer dificuldade política no gigante emergente como a que se desenha na democracia norte-americana.

Assim, se não é do interesse de Trump batalhar por uma relação construtiva, alcançando termos de ganha-ganha nas relações comerciais, a China sabe que tem opções para lidar com as ameaças dos EUA. O país asiático, é bom lembrar, é o maior detentor de Treasuries e possui a maior reserva em dólares no mundo.

Nas duas frentes, a China atua como um dos principais financiadores da dívida dos EUA, com amplo poder em desvalorizar a moeda norte-americana e elevar o custo do empréstimo no país. Porém, medidas não-tarifárias - com impactos sobre as empresas estrangeiras alocadas em solo chinês e nos investimentos externos chineses - ainda são mais prováveis.

É o momento de pôr em prática um provérbio chinês e usar de paciência para evitar um desastre, em meio a uma economia em desaceleração, um mercado de ações em queda e um renminbi enfraquecido. Pois a sabedoria milenar crê que a impaciência denotada por Trump pode deixar manco não apenas um pato, mas um elefante republicano.

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